sábado, 5 de setembro de 2009

LUGAR DESPOVOADO

Protecção: Proposto como Valor Concelhio pelo PDM de Alfândega da Fé, DR 241 de 18 Outubro 1994.




2 comentários:

  1. Trânsito, vidas esquecidas.
    Trabalhava num lugar frequentado por argelinos e indianos.
    O alojamento ficava perto da fábrica.
    O sol batia a jorros.
    A cidade, confusão, ruído, fumos,
    néon, jardins, amenidade sossegada.
    Travou amizade com Dubsveck,
    um eslavo de infância amargurada.
    Regressou depois, fazendo paragem em Marselha,
    com o Vieux Port, a Marina, a ampla Cannebière,
    a lua lindíssima sobre água.
    Tabiques, esbatidos reflexos, o melhor tempo.
    Serenidade, ondulações, suave orla.
    -
    Vertentes do pastoreio:
    Nas margens do Sabor
    a rosa ousa
    do incessante
    vaivém o rubor.
    -
    Rememorando
    o Menino das todas as linguagens
    e ubiquidades,
    que, de brincalhão travesso,
    se fez um homenzinho bem comportado,
    eternamente novo, sempre Inominável, igual ao Pai,
    e peregrino da terna eternidade,
    que entregou, à vida em flor
    dos todos os renascimentos da contemplação mais pura,
    despojada, a melhor parte do que aqui nos coube em parte,
    enquanto gastos arrojamos
    a comum miséria calada e quotidiana:
    Se aniquilou ao mínimo, picollo, ponto:
    Senhor dO Viçoso Coração dA Sua Mãe,
    onde, Escondido, nos guardou
    os vivos motivos da saudade:
    O alvor do sol,
    a água, o pão, a paz,
    o bom ar, a amizade,
    o amor,
    a família, o vinho, o lar,
    os estimulantes caminhos.
    -
    Carlo e Dora:
    Embrenhado em fumos o café.
    Carlo rascunhava uns desenhos.
    Afinal gostavam ambos de cinema, flores, iogurtes…
    Estavam a despedir-se.
    Ela levava para o quarto aquela tela azul.
    -
    A casa vazia, o quarto nu, o tijolo argamassado,
    a janela afundando-se num céu desconhecido,
    que desde um claro vão se divisava.
    -
    O dinheiro contado.
    A mala pesada.
    A muda de quarto.
    Paredes que se apertam.
    Um cão lá por fora.
    Abjecção, náusea.
    Hora de alçar.
    Zunido insistente p’lo escuro dentro.
    Quilómetros até romper manhã.
    ‘Eu Sou A Imaculada Conceição!’
    Figura iluminada num portal.
    -
    Pode sair!
    Cisnes desmaiando estagnadas eternidades;
    laranjadas num sórdido quartel por Campolide;
    monstros nas funduras marítimas da Tv.
    -
    Celeste tomara conta da sua vida
    como se duma verdade total se tratasse.
    Restavam-lhe os sonhos:
    Em margens livres, esvoaçavam aves feridas;
    deslizavam férreos comboios;
    irrompiam das altas penedias cascatas a precipitar-se;
    labirintos, cidades nunca vistas, destroçadas,
    onde se perdia e encontrava,
    cataclismos, desabamentos, conflagrações,
    reuniões, políticas quezílias, susceptibilidades,
    discussões familiares temperando doridos tédios,
    escritos evocados, mentalmente torturados,
    surtos ecos repentinos, precisões subtis,
    ardilosas provações, piscinas, plenitude.
    -
    O entardecer p’las árvores,
    suavidade, chinfrim, pardais,
    interminável, angelical melodia.
    Arrancado a um texto de Pratolini,
    um sórdido bar, onde uma mulher
    ainda jovem ingeria limonada.
    -
    A pastorinha veio a flores,
    encontrou elefantes, malmequeres,
    papoilas, borboletas.
    Pastorinha da cara preta!
    -
    Scherzo:
    Dêem-me a água e o negro café após sono,
    dêem-me música, que m’intervale goles bebidos, e baforadas,
    que entrementes se me engolfam pulmões dentro.
    Café, água, música, cigarros
    e, claro está, a minha mesa do canto.
    Por favor, com este calor, não se esqueçam de ligar a ventoinha.
    Aqui respiro o meu ar, com o ar do meu cigarro,
    raízes minhas, que também vivo no pó.
    Oh, o egoísmo de ser-se como vento ou chuva,
    e fruir-se pura e simplesmente.
    Não me puxem pra trás a cadeira enquanto me sento.
    Convenhamos em que tais brincadeiras,
    dum péssimo mau gosto,
    só cabem em certas fitas.
    O resto está certo como a morte,
    ou a como força da vida,
    como a liberdade, o amor, ou a graça.
    As contas ficam em dia
    ao desembolsar as exactas moedinhas
    com o óbvio obrigado p’lo serviço.
    -
    A última bandeira,
    embebida em sangue mártir,
    nas mãos sobreviventes
    das crianças,
    esvoaçando ao vento
    a bramir após trovoada,
    iluminada como Maria,
    lá p’los Cimos.
    -

    ResponderEliminar
  2. Pombos e pombas, que, por todo o mundo,
    ronronais, ante meus pés quase descalços,
    a quietude, a mansidão, por tudo haverdes por nada.
    Vós, sem voz, eloquentemente dizeis
    que não oscile milímetros ao íntimo ânimo,
    ante a completude haurida, plena graça.
    Que não vagueie vãos afãs, antes sossegue
    num pulsar divino, sintonia com o coração do mundo.
    E viagem termine antes da inicial partida,
    viagem quieta, voo estancado pela melhor altura,
    qual, desde cá em baixo, absoluta reside.
    Poeta, deixeis os comuns mortais erguerem-se, abalarem.
    Não os tereis mais, como outrora, suspensos do olhar,
    esses que amaríeis rever, convosco, no coração da cor.

    ResponderEliminar